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Channel: John Hemmingson
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A bailarina que nunca fui

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A linda foto do Facebook
Minha mãe sempre achou bailarinas a coisa mais linda do mundo.Assim que eu nasci me comprou umas sapatilhas de enfeite,que ficaram penduradas no meu berço.Aos três anos me colocou no balé.Eu era pequena,não lembro muito do começo,mas aos cinco anos minha vida começou a mudar.

As aulas eram um pouco mais rígidas e eu era a mais alta do grupo e além disso gordinha.Não entendo até hoje porque a escola não chamou minha mãe e avisou que bailarinas não são gordinhas e esse não era meu lugar.Acho que me deixaram ali porque ganhavam dinheiro com a mensalidade que cobravam.Foi exatamente isso que aconteceu `me deixaram ali ´.

Nas apresentações diziam que eu era alta demais,então me empurravam para a última fila.Todas as aulas me diziam que se eu quisesse dançar um dia teria que emagrecer.Eu nem sabia o que era isso.

Essa tortura durou alguns anos,até os treze,quando eu me cansei e ficou claro para todos que não era meu caminho.Eu não gosto da rigidez,dos movimentos repetidos e o tédio me invadia.

Minha mãe insiste que eu devo ser agradecida,desses anos veio minha noção de postura corporal,meu ritmo e minha flexibilidade.Mas infelizmente também vieram as lembranças e os cacos da minha auto estima,triturada em todas as aulas.

Aos dezenove anos entrei em uma escola de arte dramática clássica e o balé era uma matéria obrigatória.Não me preocupei com isso,naquele momento todos meus pesadelos no balé eram passado.

E na primeira aula começou tudo de novo.A professora levou meia hora se apresentando e outra meia hora dizendo a todos que eu teria que emagrecer,de novo eu era o problema naquela sala.Lembrei na hora de um episódio quando eu tinha cinco anos,a sapatilha nova desamarrou,me abaixei para arrumar e atrasei um pouco o grupo,logo uma professora disse- Por isso não tem gordinhas no balé,elas são assim,gulosas e distraídas.
Até hoje quando lembro disso tento entender a relação entre uma coisa e outra,mas enfim,nunca achei.

De volta ao balé,começou uma semana infernal.Todos os dias eram duas horas de aula e a professora falava diante de todos sobre o meu corpo.No terceiro dia eu disse educadamente que não pensava em ser bailarina,estava ali apenas por obrigação,já que meu objetivo era ser atriz.A professora começou a rir e disse- Nossa,não quer mesmo ser bailarina?O balé agradece,porque ainda não existem danças para baleias.

Fiquei muda,ali parada,congelada.No dia seguinte ela me deu uma bronca,me mandou fazer não sei quantas abdominais,mas por algum erro divino,algum planeta que estava atravessando,ela encostou em mim,não sei porque fez isso,mas me deu um tapa na barriga e eu reagi.Não sei se foram os anos de silêncio,não sei o que aconteceu naquela sala naquele minuto,mas eu estava perto da barra de balé e meus tênis estavam ali no chão,peguei um deles e joguei na direção dela que já tinha se afastado, mas acertei no espelho e quebrou.

E sai da sala.Percebi então que estava no corredor da escola,de sapatilhas e minha mala estava lá dentro.Então resolvi me sentar na escada e esperar.Um colega que tinha visto tudo estava saindo para ir ao banheiro me perguntou o que eu fazia na escada,disse que estava esperando para pegar minha mochila e ir embora,certa de que seria expulsa da escola.E ele me disse-Meu pai é advogado,se precisar liga pra ele, não podem te expulsar porque a professora te humilhou a semana inteira e te agrediu,isso dá processo,é assédio moral e violência física.

Parece que naquele momento o sol abriu.Entendi o que tinha acontecido e quando o diretor apareceu eu me senti forte o suficiente,se fosse antes teria ficado quieta.Expliquei o que aconteceu,levei bronca,suspensão e tal,mas não fui expulsa,apesar de ter sido colocada em outra turma.

E só lembrei de tudo isso porque vi uma foto no Facebook.Confirmando aquela idéia de que `imagem ´ é tudo,fiquei impressionada,é de uma bailarina gordinha.

Achei a imagem incrível,linda,porque eu nunca quis ser bailarina,mas nunca soube dizer se não fui porque não queria ou não fui porque sempre me avisaram que meninas gordinhas não são bailarinas.Como desde o primeiro dia eu fui rejeitada eu descartei a idéia.

Cada vez que alguém vem e prova que todos estão errados,eu faço uma festa.O balé é uma arte e por isso mesmo não tem essa de quem pode ou não dançar.Mas bailarinas são magras!Sim,porque alguém colocou essa idéia na roda,não foi decreto divino e sendo assim pode ser mudado sempre.

Lembrei de muitas coisas com tristeza,porque milhões de meninas sonham em serem bailarinas,mas são obrigadas a pendurar sua sapatilhas porque não estão magras o suficiente.

Sonhos não tem peso,conquistas não se colocam na balança.Quem quer ser bailarina vai ter que ralar muito e isso não tem a ver com o peso.

O que sonhamos,no fundo de nossa alma,deve sempre ser preservado,nunca jogado a luz,para ser destruído como milhões de coisa o são.

Eu podia ter sido bailarina,se apenas me tivessem deixado dançar,sem estar sempre lembrando do meu peso e de como eu era a `errada ´.

Não fui bailarina e lamento comunicar a todas minhas professoras de balé,vocês me massacraram,mas mesmo assim ainda consegui juntar meus pedaços e erguer minha alma de novo.Porque isso é uma coisa que aprendi na vida,você pode massacrar uma pessoa e seus sonhos,mas na alma dela você não encosta.E quem eu sou ninguém conseguiu mudar.E quem eu ainda vou ser,ninguém vai mudar.Porque hoje minha alma está blindada ao preconceito dos outros e eu vivo no meu mundo e nele dança quem quer,porque arte aqui é sempre bem vinda.

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